Cerca de 42 famílias que moram na ocupação Marielle Franco, na região do bairro Satélite, zona leste de Teresina, foram alvos de uma ação de reintegração de posse no início da manhã desta quinta-feira (15). A ordem de despejo se deu em cumprimento a uma ação judicial que requereu o retorno da posse do terreno ao proprietário. Oficiais de Justiça foram ao local, acompanhados de equipes da Polícia Militar para retirar as famílias das casas. Veículos tratores foram utilizados para derrubar as construções feitas no local.
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Embora tenha sido o cumprimento de uma ação de reintegração de posse, moradores e representantes da comunidade alegam terem presenciados uma série de irregularidades no ato; desde a violência policial - que consideraram excessivo o uso da força policial - até a um suposto mandado de reintegração que não é específico da área em questão. Quem faz a denúncia é Lucineide Barros Medeiros, professora da UESPI que faz um trabalho de extensão junto à comunidade e que presenciou a ação de reintegração.
Segundo ela, a violência empregada no ato e a falta de conselheiros tutelares no local - tinham crianças nas casas da ocupação - são apontados por ela como alguns dos erros cometidos na ação. "(a reintegração) iniciou sem as retaguardas. Não tinha órgão de defesa do direito da Criança e do Adolescente, nem de idoso. Tinha força policial montada, tropa de choque. E aí, começaram a agredir as pessoas. Inclusive, teve uma prisão logo no primeiro momento. Depois disso, começaram a jogar o trator por cima das casas”, relata.
Lucineide disse ainda que o mandado que estava nas mãos do oficial de justiça não era relacionado ao terreno em questão, sendo - segundo ela - uma grave ilegalidade. “Depois de muitas tentativas, a gente conseguiu uma mediação para parar o trabalho do trator. Conseguimos trazer uma representante da SERES, que é a Secretaria de Relações Sociais. E descobrimos uma coisa que é criminosa, que precisa ser denunciada e apurada. Eles trouxeram um mandado de reintegração de posse relativo a uma área diferente da área que eles despejaram hoje. Isso está sendo comprovado. A representante da SERES que também é advogada, está com a documentação em mãos, eles executaram um despejo numa área a qual não estava designado o despejo para hoje”, relatou.

No final da manhã, os tratores foram paralisados. Segundo Lucineide Barros, 80% da área foi derrubada pelo trator. “Tudo que as pessoas conseguiram com muito esforço e dificuldade agora está destruído”, diz a professora.
Moradores relatam ações arbitrárias
Durante o cumprimento da ordem de despejo, moradores da Ocupação Marielle Franco denunciaram que as ações da polícia são arbitrárias. De acordo com o técnico de Enfermagem, Moisés Dantas, quem está ocupando o terreno quer apenas garantir o próprio direito constitucional de ter um pedaço de terra para chamar de seu. Ele conta que chegou a ser conduzido para a delegacia por tentar defender os demais moradores.
"Eu fui tentar defender uma criança e fui preso. Mas estamos aqui na luta pelo nosso direito, porque não podem colocar o povo forçadamente para fora. Tem 66 pessoas aqui, todas as casas foram destruídas, os barracões. É o suor do povo que está sendo derrubado", desabafa Moisés.
Questionado sobre a situação, o coordenador de Mediações e Conflitos da Polícia Militar, coronel James, explicou que não houve truculência, mas apenas o cumprimento da ordem judicial de despejo. A operação de hoje, de acordo com ele, é a última etapa de todo um protocolo que foi executado para retirar as famílias do local. Ele começou com o reconhecimento da situação, no dia 01 de abril, com a identificação de quantas famílias e construções havia no espaço.
Em seguida, veio a notificação dos moradores e a tentativa de fazer a saída voluntária. "Estivemos aqui antes, fizemos o levantamento de quantas famílias, quantas casas, quantas crianças haviam aqui e informamos para vários órgãos do Estado como a Defensoria Pública, o Ministério Público, as Secretarias de Relações Sociais e hoje estamos aqui para fazer esta saída involuntária. Trouxemos algumas estruturas para apoio logístico e retirada dos bens pessoais dos ocupantes. Estamos só dando seguimento à ordem da Justiça", explica o coronel James.
A intenção, ele acrescenta, não é causar prejuízos às famílias, tanto que a polícia está aguardando que as pessoas retirem objetos de uso pessoal, fiação, telhas e demais materiais usados para levantar as moradias.
Governo do Estado monitora ações da polícia militar
Durante o processo de reintegração, a Secretaria de Estado das Relações Sociais (SERES) esteve presente para garantir que não houvessem excessos policiais. De acordo com Claudiomir Vieira, diretor de Relações Sociais da SERES, as famílias entraram em audiência com a Justiça a fim de discutir a situação.
"Nossa função aqui é evitar excessos do ponto de vista da polícia militar em relação à reintegração de posse das famílias que estão aqui. Fizemos uma discussão com o oficial de Justiça e sugerimos a ele que dialogasse com o Judiciário para suspender a ação até segunda-feira, para que o movimento possa contestar judicialmente a decisão que está sendo executada. Isso porque eles estão fazendo uma série de questionamentos, inclusive sobre o local da área de reintegração. Estamos aguardando, com o objetivo de evitar que a polícia cometa excessos e de preservar a integridade das famílias, bem como sua ação social, que é importante", explicou.
O diretor afirmou ainda as reivindicações do movimento social é justa. "Os movimentos sociais que estão aqui são compostos por famílias que dependem de uma solução para poderem construir suas casas e garantir sua reprodução social. A reivindicação é justa, mas é preciso que todo o processo seja verificado. É necessário fazer um levantamento da questão fundiária. Enquanto isso, a atuação da polícia deve aguardar a guarda da decisão judicial para proceder ou não com a ação. Aqui há mulheres grávidas, crianças, pessoas com deficiência é preciso que tudo isso seja discutido", acrescentou.
Para a secretaria, é preciso construir um protocolo que atenda às questões gerais da comunidade, para evitar esses conflitos. "Não é mais issível que, em pleno século XXI, a gente continue vivendo essa situação de despossessão de famílias que precisam de um espaço para morar e reconstruir sua existência".
Área está sem uso há mais de 30 anos, diz advogada
O terreno onde se instala a ocupação Marielle Franco se encontra sem uso e ocioso há mais de 30 anos. Quem diz isso é a advogada representante das famílias, Rafaela Carioca. Segundo ela, a reintegração de posse que foi deferida em favor da fábrica que se diz dona do terreno tem como endereço a rua ao lado, a Rua Talmiran Leal. Ou seja, o local ocupado pelos moradores não faz parte da ação de reintegração de posse.
"Isso já foi constatado pelo próprio Ministério Público, pela 5ª Vara Cível. Há um erro nos documentos que foram anexados nos autos que faz parecer que esta área é propriedade privada. Mas o terreno em questão fica do outro lado. Está havendo aqui uma violação do direito humano fundamental, que é o direito à moradia. Esse terreno estava abandonado, não cumpria sua função essencial", explica Rafalea.
A advogada destacou que a justiça já havia considerado suspender a liminar que autoriza a desocupação do terreno, mas que para isso, o oficial de justiça precisa devolver a ação. Rafaela cobra uma política habitacional mais efetiva por parte do poder público e questiona onde os moradores da ocupação Marielle Franco poderão morar se não ali. "O governo precisa gerenciar a situação das pessoas que estão em déficit habitacional, que não têm locais de moradia adequada. Fazer uma política fundiária correta. Onde essas pessoas vão morar? Vão sair daqui para onde?", questiona.
Segundo o arquiteto e urbanista Luan Rusvell, a área em questão pertence ao município de Teresina. O ime atual envolve uma empresa privada, que está reivindicando a posse do terreno. Na década de 1980, o município cedeu uma parte desse terreno — especificamente a faixa próxima à Avenida Kennedy — para que a empresa se instalasse. No entanto, cerca de dois terços da área nunca foram utilizados e permaneceram sem função social até então.
Foi nesse contexto que se deu a ocupação por parte das famílias. Luan afirma que apenas o município, como proprietário legal da área, tem legitimidade para reivindicar a posse.
"Na verdade, quem está devendo, quem não está cumprindo com seu dever, é a empresa privada. Do outro lado, estão as famílias que de fato não têm moradia e que estão reivindicando a posse e o uso dessa área para que seja cumprido o seu direito à moradia", disse.
O que dizem os citados
A reportagem do Portal O Dia entrou em contato com a Polícia Militar, para buscar um posicionamento sobre as denúncias de violência policial durante o ato de reintegração de posse. Mas até o momento não obtivemos resposta. Também procuramos a Semcaspi, que cuida dos Conselhos Tutelares da capital, para tratar sobre a falta de conselheiros durante a reintegração de posse. O órgão ficou de dar uma resposta à reportagem. Sobre a possibilidade do mandado de reintegração não ser referente à área onde as famílias foram despejadas, procuramos o TJ-PI, para obter mais esclarecimentos. Em todos os casos, o espaço segue aberto.
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